terça-feira, 7 de julho de 2015

Palavras e Afetos

Uma coisa boa de ser psiquiatra e psicanalista está na relação tranquila que somos forçados a desenvolver em relação aos afetos e à linguagem. Aprendemos que a palavra tem uma força incrível, mas não deve ser temida, só enfrentada. Explorada em toda extensão possível, assim como os afetos. Sinto ódio, sinto amor, a que se deve? O medo das palavras é muito antigo, é tribal. Está no pensamento mágico que lhe atribui um poder desmesurado. Jung trabalhou muito bem nessa linha, entre a psicanálise e a antropologia, entre a ciência e a religiosidade, vasculhando os arquétipos. Deixei a prática da psiquiatria e da psicanálise, mas elas me marcaram profundamente de maneira que ocorre, por vezes, um estranhamento social quando esta posição mais livre em relação à linguagem e aos afetos se manifesta cotidianamente. No meio acadêmico isso fica mais marcado, pois é um meio onde o discurso e as condutas seguem certos rituais de prudência e pudor. Gosto muito de Mário Testa quando ele fala da necessária coerência entre pensar, sentir, dizer e atuar, mas penso no quão difícil isso pode ser. Nos obstáculos que enfrentamos para sermos autênticos e coerentes sem perdermos a credibilidade, nem fazermos muitos inimigos. Sem assustarmos os pobres mortais: nós.

A questão é que amo jogar com as palavras e viver os afetos. Amo a língua, esse código doce-estranho em mutação constante e desafiadora. Amo o português. E me deixo atrair por outras línguas, raízes e histórias. Por outro lado, morro de medo que o português perca sua singularidade e seja absorvido pelo inglês. É uma besteira, dizem. Acontece que não aceito que percamos nosso modo de pensar, específico. Pensar no português. Esse medo quase me paralisou quando fiz o pós-doc na Inglaterra. Depois, fui trabalhando isso em mim. Acho que superei o medo. Não o desejo de proteger nossa língua e nossa sociedade, mas o medo da opressão cultural. Passei a considerar que a melhor maneira de lutar contra essa opressão é escrever em português. E dizer o que eu penso - porque sou capaz de pensar, concordar e discordar e O SABER É UMA REGIÃO DE NINGUÉM, sendo de todos. Dizer meu pensamento pensado por tantos outros, mas pensado particularmente por mim e no MEU português, que é uma mistura do falar das ruas e dos livros. Decidi tratar o inglês com objetividade, mas sem subserviência.

Falava dos afetos, das palavras e das coisas, sem pensar em Foucault (mas já, inevitavelmente, pensando), meu autor querido. Digo agora, para que me entendam melhor, e eu desejo isso, esse entendimento de uma posição existencial, que a superficialidade ou a profundidade das idéias não necessitam estar submetidas a nenhuma regra externa ao próprio entendimento. Ainda que o faz de conta mimético das eras passadas esteja colado em todas as entranhas do nosso pensamento e a performance, a retórica, cobre seu preço, ou tenha sua utilidade, não é possível para qualquer ser pensante deixar-se ficar contido por ele de tal forma a ignorar a lógica e o bom senso.

Pois quando falo, as palavras me pertencem, a ninguém mais. Do mesmo modo que quando ouço ou leio. Assim, palavras e afetos são só meus, porque a partilha do objeto (língua, ideia, emoção) tem sempre algo de totalmente particular e incompartilhável. Essa afirmação parece circular, mas não é. Ela escapa, desliza, se observarem bem. Palavras e gestos são pétalas, farelos ou germes lançados ao vento e recolhidos de maneira muito específica por cada ser vivente, e talvez até pelos não viventes, pois uma rocha recebe a vibração da voz humana e se espatifa ao receber sua força de construção ou desconstrução. Uma vez recebidos e deglutidos, sofrem novo processo de ruminação e apropriação, ficando armazenadas ou sendo recombinadas em um sentido privado, para uso, na maioria das vezes, coletivo. E vão-se formando as redes de comunicabilidade humana, dessa forma, com suas continuidades e descontinuidades naturais ou artificiais.

Então, a escolha das palavras e as ações propositivas não podem se render tão facilmente às expectativas desenvolvidas pelas práticas calcificadas da técnica e da socialidade obtusa. Embora isso frequentemente aconteça.

Lembro de um mestre que não me permitiu usar a palavra “maternagem”, pois rimava com “sacanagem”. Fazia uma censura amorosa para me proteger da maldosa censura acadêmica. Como eu mesma, talvez em contradição com meu pensamento, faço com meus próprios orientandos. Trata-se, às vezes, até, de uma censura baseada no gosto, essa que eu pratico. Detesto, por exemplo, a palavra “hodiernamente” e lá vou cortando ela dos textos dos meus aprendizes de feiticeiro. Mas o que esta palavra me fez? Nada, que eu saiba. Somente me parece pretensiosa. Certamente, transfiro para ela sabe lá quais afetos ou mágoas não hodiernas. Aliás, analisando agora, parece que tem algo aí: h – odi – erna. Odi-o. Odeio o ódio. Ha-hahaha. Deve ser isso. Ou seja, é muito fácil se emaranhar nas estruturas herdadas que não se comunicam entre si e produzem ações com motivações inconscientes.

Então! Para finalizar esse texto, que já se estende um tanto além do esperado, eu reconheço que falo da liberdade e do aprisionamento. Retomando Foucault e sua concepção da língua como algo finito e da linguagem como algo infinito eu me alinho nesse amalgama de finitude-infinitude para fazer pender o pensar, sentir e agir para o segundo pólo, o da liberdade, sem deixar de atentar para a responsabilidade (primeiro pólo). Dialeticamente, mas fazendo um estiramento maior em um dos momentos: o da liberdade (ou do prazer). Para bom entendedor, meia palavra basta. Eu proferi MUITAS palavras. Espero atingir MUITAS pessoas, de modo a liberar nosso gozo existencial, ético e estético. Espero sem esperar muito. Mas faço. Ou melhor, digo: a palavra não é pouca coisa e o amor, já disseram outros, é uma coisa muito estranha.