Uma coisa boa de ser psiquiatra e
psicanalista está na relação tranquila que somos forçados a desenvolver em
relação aos afetos e à linguagem. Aprendemos que a palavra tem uma força
incrível, mas não deve ser temida, só enfrentada. Explorada em toda extensão
possível, assim como os afetos. Sinto ódio, sinto amor, a que se deve? O medo
das palavras é muito antigo, é tribal. Está no pensamento mágico que lhe
atribui um poder desmesurado. Jung trabalhou muito bem nessa linha, entre a
psicanálise e a antropologia, entre a ciência e a religiosidade, vasculhando os
arquétipos. Deixei a prática da psiquiatria e da psicanálise, mas elas me
marcaram profundamente de maneira que ocorre, por vezes, um estranhamento social
quando esta posição mais livre em relação à linguagem e aos afetos se manifesta
cotidianamente. No meio acadêmico isso fica mais marcado, pois é um meio onde o
discurso e as condutas seguem certos rituais de prudência e pudor. Gosto muito
de Mário Testa quando ele fala da necessária coerência entre pensar, sentir,
dizer e atuar, mas penso no quão difícil isso pode ser. Nos obstáculos que
enfrentamos para sermos autênticos e coerentes sem perdermos a credibilidade,
nem fazermos muitos inimigos. Sem assustarmos os pobres mortais: nós.
A questão é que amo jogar com as
palavras e viver os afetos. Amo a língua, esse código doce-estranho em mutação
constante e desafiadora. Amo o português. E me deixo atrair por outras línguas,
raízes e histórias. Por outro lado, morro de medo que o português perca sua
singularidade e seja absorvido pelo inglês. É uma besteira, dizem. Acontece que
não aceito que percamos nosso modo de pensar, específico. Pensar no português.
Esse medo quase me paralisou quando fiz o pós-doc na Inglaterra. Depois, fui
trabalhando isso em mim. Acho que superei o medo. Não o desejo de proteger
nossa língua e nossa sociedade, mas o medo da opressão cultural. Passei a
considerar que a melhor maneira de lutar contra essa opressão é escrever em
português. E dizer o que eu penso - porque sou capaz de pensar, concordar e
discordar e O SABER É UMA REGIÃO DE NINGUÉM, sendo de todos. Dizer meu
pensamento pensado por tantos outros, mas pensado particularmente por mim e no
MEU português, que é uma mistura do falar das ruas e dos livros. Decidi tratar
o inglês com objetividade, mas sem subserviência.
Falava dos afetos, das palavras e
das coisas, sem pensar em Foucault (mas já, inevitavelmente, pensando), meu
autor querido. Digo agora, para que me entendam melhor, e eu desejo isso, esse
entendimento de uma posição existencial, que a superficialidade ou a
profundidade das idéias não necessitam estar submetidas a nenhuma regra externa
ao próprio entendimento. Ainda que o faz de conta mimético das eras passadas
esteja colado em todas as entranhas do nosso pensamento e a performance, a
retórica, cobre seu preço, ou tenha sua utilidade, não é possível para qualquer
ser pensante deixar-se ficar contido por ele de tal forma a ignorar a lógica e
o bom senso.
Pois quando falo, as palavras me
pertencem, a ninguém mais. Do mesmo modo que quando ouço ou leio. Assim,
palavras e afetos são só meus, porque a partilha do objeto (língua, ideia,
emoção) tem sempre algo de totalmente particular e incompartilhável. Essa
afirmação parece circular, mas não é. Ela escapa, desliza, se observarem bem.
Palavras e gestos são pétalas, farelos ou germes lançados ao vento e recolhidos
de maneira muito específica por cada ser vivente, e talvez até pelos não
viventes, pois uma rocha recebe a vibração da voz humana e se espatifa ao
receber sua força de construção ou desconstrução. Uma vez recebidos e
deglutidos, sofrem novo processo de ruminação e apropriação, ficando
armazenadas ou sendo recombinadas em um sentido privado, para uso, na maioria
das vezes, coletivo. E vão-se formando as redes de comunicabilidade humana,
dessa forma, com suas continuidades e descontinuidades naturais ou artificiais.
Então, a escolha das palavras e as ações propositivas não podem se render tão facilmente às expectativas desenvolvidas pelas práticas calcificadas da técnica e da socialidade obtusa. Embora isso frequentemente aconteça.
Lembro de um mestre que não me
permitiu usar a palavra “maternagem”, pois rimava com “sacanagem”. Fazia uma
censura amorosa para me proteger da maldosa censura acadêmica. Como eu mesma,
talvez em contradição com meu pensamento, faço com meus próprios orientandos.
Trata-se, às vezes, até, de uma censura baseada no gosto, essa que eu pratico.
Detesto, por exemplo, a palavra “hodiernamente” e lá vou cortando ela dos textos
dos meus aprendizes de feiticeiro. Mas o
que esta palavra me fez? Nada, que eu saiba. Somente me parece pretensiosa.
Certamente, transfiro para ela sabe lá quais afetos ou mágoas não hodiernas.
Aliás, analisando agora, parece que tem algo aí: h – odi – erna. Odi-o. Odeio o
ódio. Ha-hahaha. Deve ser isso. Ou seja, é muito fácil se emaranhar nas
estruturas herdadas que não se comunicam entre si e produzem ações com
motivações inconscientes.
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