Uma
leitura serena de domingo, surpreendentemente des-veladora. Em “O fim do
humanismo e a tarefa do pensamento”, Oswaldo Giacoia Júnior (A Experiência do
pensamento, organizado por Adauto Novaes e publicado em 2010 pela Edições
SESCSP) reflete sobre os efeitos da domesticação da técnica sobre o homem e a substituição
da violência dos ritos da caça e da religião, pelos ritos do direito e do
mercado, nos quais a imolação da vítima (ou réu) forja a identidade social.
Não
há como desprezar as relações que vão se estabelecendo na leitura agradável do
texto com o rito que nesse exato momento se prepara e se inicia em todo o país
(a procissão), de linchamento de um pai, uma mãe e seus malditos rebentos: Lula,
Dilma e os partidários do PT.
Para
quem não leu Totem Tabu, onde Freud propõe a fundação da sociedade no mito do
assassinato do pai da horda (onde os filhos se unem, assassinam o pai tirano, o
comem e desencadeiam uma luta fratricida posterior, que a todos faz sucumbir, os
levam ao arrependimento e sua divinização), as “semelhanças” (eterno retorno do
recalcado) não param por aí (nem as semelhanças com a paixão de Cristo são à
toa).
Desprendem-se
dessa hipótese psicanalítica e resvalam para todas as nossas práticas da “moderna”
socialidade, de consumo desvairado, canibalístico e cana-balístico, de tudo que
surge no caminho (produtos
industriais autênticos ou disfarçados, ideias, modas, pensamentos, drogas, armas
e todos os animais e vegetais do planeta, tudo vindo goela abaixo dos zumbis
que nos tornamos).
Como
gosto de dizer: é tudo uma coisa só. Não é evolução, não é avanço. É a
paralisia em um modo de funcionamento arcaico e cego. Sacrifica-se hoje, dia 13
de março, o homem comum, o trabalhador, a mãe nos
quais é projetado tudo de ruim não suportado em si mesmo. Sacrifica-se o que se é, pelo desejo de ser um outro bestialmente idealizado (branco, europeu ou americano, quase nobre, inteligente, esperto, eleito). Sacrifica-se a parte melhor de si mesmo, para manter o lado perverso e ele é violento. Ele está no trânsito todo dia. Ele está no nosso lar, quando se é permissivo ou ausente com a família. Ele está na escola, quando tenta-se a todo custo obter notas que não condizem com seu desempenho. Ele está na desvalorização do outro (que no fundo sou eu)
diferente: o negro, a mulher, o índio, o nordestino, o pobre. Lula representa o
pobre e Dilma a mulher. E, quanto ódio despertam.
Essas são as vítimas que se quer imolar, os demônios que se quer exorcizar, em
um ritual de indignação fingida, vítimas da enorme violência estrutural na qual nossa sociedade
se funda: sociedade de pobres migrantes que assassinaram os nativos de um lindo
paraíso, tomaram sua terra e bens, e os escravizaram. E ainda sequestraram
outros povos para também os escravizar. Isso acontece porque, no imaginário, a vítima sempre retorna para cobrar os crimes contra ela praticados, daí os ritos, a eterna imolação, como se não bastasse o primeiro mal. Não, ele tem que se repetir e se repetir, se alimentar de si mesmo ad infinitum, porque não se assume como faceta a ser transformada, limpa, esvaziada do seu poder de magoar e destruir.
Então,
não é de estranhar essa violência e ódio cotidianos que cresce na alienação imposta (a verdade dói), na guerra de todos contra todos, na frustração pelo não alcance de um padrão de
consumo que é inalcançável. E na luta de
classes que ora nos divide (a divisão em classes já é por si violenta). Não vou
para a rua nesse dia (deixo isso para o povo do TFP e afiliados). Não me farei
de vítima sonsa (aquela que sonega impostos, explora os empregados, viola as
leis do trânsito, manipula os outros para satisfazer seus prazeres espúrios, que é global, bandida que se faz mocinha, atriz-ator de novela brega, cantora
sem qualquer talento, socialite ostentação, “jornalista”, o cara, mentiroso,
falso e cínico). Nem serei algoz de ninguém (abusar do poder que se tem é a
pior de todas as fraquezas mas, e a vaidade, essa fraqueza última, onde fica?).
Comerei o pão e beberei o vinho, olhando as árvores e os pássaros que restam
felizes e inocentes, no meu quintal. Esse é o melhor de todos os rituais. Ainda
estou viva. Testemunha cética de um mundo que se esvai.
Que
esse texto violento-calmo fale forte-suave na consciência leitora e a desperte
para o seu redor e para si. Somos todos ambiguidades e certezas mal
compreendidas.