sexta-feira, 12 de junho de 2009

Um olho na história

Visitando certa revista, refleti sobre o que vem sendo nos últimos dois meses minha maior fonte de gratificação. Aquilo que origina bons pensamentos, um lugar onde se pode refugiar antes de dormir. Esse lugar-refúgio tem sido um livro sobre a história de Constantinopla, e sua série interminável de governantes. Cidade grega, depois romana (mas mantendo a base populacional grega), viveu até o período otomano uma grande miscigenação, invadindo e sendo invadida, se reconstruindo nessa paisagem (landscape) por dois mil anos (Bizâncio 658 AC- Istambul 1453 DC), período que até então eu “visitei” como turista da história, pois me encontro em meados de mil e seiscentos... O livro, ao fazer esse tour panorâmico, deixa ver, aqui e ali, através de estratos de cronistas famosos, ou pela síntese do autor, aspectos interessantes, um dos quais eu quero aqui reportar e dividir com os que, como eu, se alimentam da vida dos que já foram. Mas, entendam, não se trata de necrofilia ou algo parecido, se trata da vida que permanece em memória, em costumes, hábitos, registros, monumentos (Foucault que me perdoe se pareço o trair), objetos-restos de um processo que se dispersa pelo vento guloso, aquele que no seu movimento, traga a tudo e a todos. O mistério dessa vida perdida me encanta naquilo que se chama resistência e que escapa a esta voracidade dos tempos, insinuando-se nas estruturas, desafiando as leis dos homens e dos deuses. Bom, filopoesia à parte vamos à tal história: as corridas de cavalos com suas facções de torcida verde, azul, branca e vermelha. Essas facções foram se constituindo em relação com as associações profissionais, as guildas, e tinham características de classe e de religião. Assim, como o Bahia é do povão e o Vitória das elites (Epa! É só uma brincadeira). Enfim, os azuis eram religiosamente ortodoxos e vinham das classes alta e média, enquanto os verdes, trabalhadores, sendo radicais tanto na religião, quanto na política. Como essas duas facções fossem as dominantes, os brancos e vermelhos terminavam, muitas vezes sendo absorvidos pelas polarizações que provocavam. O autor, John Freely, conta que as corridas envolviam, em geral, quatro quadrigas, duas carruagens puxadas por quatro cavalos cada, ornamentadas com as cores dos seus “times”, por uma distância de dois km e meio. As atividades circenses com malabaristas, animais e atores ocorriam no intervalo das disputas. O interessante desses esportes era a paixão que despertavam e que dividia a população, levando muitas vezes a agitações, numa relação estreita com dinheiro, crime e morte. Segundo um dos cronistas, os homens chegavam a colocar os interesses dos seus “times” acima da “família, do lar, do país”. O calendário oficial, nos séculos 5 e 6, apresentava cerca de 66 feriados anuais, chegando, às vezes a 24 corridas por dia. Estas corridas eram realizadas no Hippodrome (ver imagem), uma espécie de estádio-arena, onde todas as cerimônias públicas importantes, incluindo castigos e posses eram realizadas. Por conta desses dados passei a especular, enquanto leiga curiosa, sobre a origem do termo “sangue azul”... se não viria dessa conexão nobreza-time dos azuis. Pode ser também que a relação de causalidade esteja invertida. De qualquer modo, Constantinopla, nesse período, é a cidade mais importante do ocidente. Sua história é a nossa história: triste e linda ao mesmo tempo. Sentada na poltrona eu assisto, passiva, coração e livro na mão, ao desfile das carruagens, aos dramas palacianos, massacres populacionais imensos e constantes, nessa vivência experimental e controlada que a atividade onírica permite. Esqueço, por momentos, das chacinas que logo ali, do outro lado do muro, se cometem, verdes contra verdes. Do lado de cá, podendo ser a qualquer momento expulsa pelos azuis, eu confabulo com os vermelhos saídas para um novo mundo onde os jogos possam ser virtualidades, meras simulações do que poderia ser, e não brincadeira sem graça com a vida dos outros. Por isso, o alívio do sonho é o mesmo do passado, alternativa alegre à morbidade do presente. Ai se eu pudesse esquecer que tudo isso é real... porque perdi minha inocência?

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