quinta-feira, 25 de junho de 2009

O trem X

Só conseguimos pensar o impossível porque a possibilidade está dada dentro de nós. Ou, não nos é dado a possibilidade de pensar o impossível. Embora digam por aí que só dentro da tradição da academia se possa pensar filosoficamente, ou até que no Brasil não há filosofia. Eu mesma ouvi, eu e o auditório de Direito da UFBA, direto da boca da Agnes Heller, discípula de Lukács: “Porque vocês querem ser bons em tudo? Não já são bons em música, futebol?” Bom, ela quase não sai viva de lá. E eu, saí como Caetano, humilde, ciente que jamais seria filósofa. Minha teimosia, entretanto, contradizendo as impossibilidades concretamente argumentadas, vive a forjar lançamentos. Um verdadeiro Cabo Canaveral Tupiniquim. Faço exatamente da forma como sempre quis fazer: a partir da história. Do caos. Da colcha de retalhos. Abandono os métodos não os abandonando de fato. Porque os métodos fazem parte do meu esquema cognitivo mais remoto, eles me perseguem, brigam entre si, terminando prisioneiros de alguma hegemonia construída por afinidades a cada processo, a cada passo, de forma inicialmente confusa, clareando a seguir, em movimentos de frente e fundo, de difícil apreensão na sua totalidade. Digo o seguinte: quero liberdade de pensamento, mesmo a sabendo restrita, pois só dessa forma será possível ultrapassar a minha enorme deficiência cultural, historicamente dada e filosoficamente comprovada. Uma vez dito, simplesmente aposto que posso ser mais do que sou, e jogo todas as cartas nessa hipótese. Aposto que sou um gênio incompreendido das ciências humanas e vou descobrir o segredo da vida e do universo. O gênio vem, prepara-se para baixar, tomar meu corpo.
Sou arremetida para um lugar distante, para um dia em fins de 1978, ou início de 79. Foi um momento de impacto aquele. Tinha a mania, a qual preservo de forma atenuada, de quase não comer pela manhã. Eu estava em pé e as cores tornavam-se esbranquiçadas. O chão fugia. O som se distanciava lentamente, e uma razão imperativa me mandava sentar. À minha frente, um sapo imobilizado tinha sua coluna seccionada. Ele havia sido anestesiado com um algodão embebido de certa substância, e se encontrava crucificado (braços e pernas amarrados) com o coração exposto, batendo. Pois estava vivo. Sem saber, é claro, mas vivo, aberto na sua intimidade orgânica.
Passado aqueles momentos de aflição (eu viveria outros semelhantes estrada a fora, ahhh viveria), a atenção enfim sairia do mal-estar corporal se dirigindo para a fala da mulher operária, cirurgiã de batráquios, a professora. Ela dizia, imagine o espanto dos jovens, que os homens tinham um clitóris hipertrofiado como forma de ajudar os espermatozóides a fugir da degradação do ambiente, uma vez que a natureza havia trazido, na espécie humana, os óvulos cada vez mais para o ambiente, quente, úmido e protegido do interior feminino, e blá, blá, blá. Então o crescimento desse clitóris era o resultado de muitas tentativas de chegar lá ... Ela dizia, e eu podia, minto, posso, pois que ela não disse tudo isso aí não, disse metade, imaginar esse crescimento ao longo da evolução das espécies, a mulher levando a memória da espécie para dentro e o homem se esticando, se esforçando para acompanhar, penetrar. Aliás, porque "penetra" na língua portuguesa se refere a alguém que entra onde não foi convidado, isso eu não sei, mas posso igualmente mirabolar.
Voltando então à linha do trem, e ao momento que a locomotiva me pegou de frente, posso ver a trajetória desse pensamento pelo ar, caindo naquela árvore, naquele galho vazio, onde a genética mostrava outro fato inusitado, que consistia na irremediável "falta" masculina: a quarta perninha do xis.
A idéia da incompletude masculina como origem de comportamentos aparentemente inexplicáveis como, por exemplo, uma quase total incapacidade para cortar a própria unha do pé. Tanto é que, existem cabeleireiros, barbeiros, mas não existe manicure ou pedicure homem.
Agora, o que tem a ver a incompletude do “y” com o diagnóstico tão reservado daquela mulher marxista sobre nossa incapacidade cultural de pensar?
Vamos abrir um parágrafo reflexivo. Na Bahia nós pensamos preferencialmente em redes, substitutos perfeitos do sofá e do divã, tomando café em caneca, ou deitados em baixo dos cortinados de filó, daí o verbo filo-sofar adquirir aqui conotações ligeiramente diferentes que em outros cantos do planeta. Os pensamentos nos chegam pelo vento Noroeste, se não me engana minha geografia, depois de percorrer as costas cálidas da ontomãe África, e se infiltram na alma, como perguntas. Dúvidas sobre questões que já intuímos as respostas. Pois só se pergunta o que se sabe de antemão.
O sapo sacrificado não é apenas a origem de toda possibilidade, mas a prova cabal da maldade imanente do querer tudo: saber, ser, ter. Eu dispenso um conhecimento que desconhece a vida. Na minha memória uma cena ecoa: inúmeras turistas da Indonésia pisoteando as tulipas só para tê-las vivas em uma foto. Matam plantas por uma foto. Matam peixes também. Aliás, isso até parece uma besteira, eu estar me indignando por tão pouco. O que é um sapo, uma tulipa, um peixe, um homem com seu “x” capenga?
Detenho-me, imobilizada. O trem descarrilhou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário