domingo, 26 de julho de 2009

Da língua e seus clichês

Detestável o clichê sobre clichês. Volta e meia surge alguém querendo "salvar" a língua dos lugares-comuns, jargões, e outras estereotipias típicas da normalidade. Normal no sentido de medianidade, distribuição ao natural, estatisticamente falando. Um jornalista falava dia desses, acidamente, contra o excesso de clichês. Mas fazia isso com muito pedantismo, o que me enfureceu. Ele não perguntou sobre o que poderia levar certas expressões a se enraizarem no gosto popular, principalmente aquelas que, inicialmente, se revestiram de algum requinte, porque foram ditas por algum notável aí da vida. Não se perguntava sobre a utilidade do lixo, nem do lixo porventura produzido por si próprio. De qualquer modo, todo lixo pode ter alguma utilidade e pode, até, por escassez, insistência, ou rebeldia, provocar beleza. Ou diferença. Em suma, policiamento sobre linguagem é um verdadeiro saco. Autoritarismo cultural, ou coisa piorpior. Não me sinto autorizada nem a criticar os anglicismos, que odeio, pois isso me impediria de usar e abusar dos recursos que outras línguas podem me dar. Então, o que autoriza um cicraninho qualquer a reclamar da repetição, se esse movimento é inerente a todas as idades e condições? Se os adultos, mesmo enjoados, não podem escapar da sua porção macaco, mesmo que queiram? Posso dizer: quem o autoriza é um meio impresso intelectualóide do eixo sul com circulação prevista para a classe “A” e que caiu por acaso nas minhas mãos “CC”. “CC” aqui quer dizer “com calos”. Eu inteira posso ser calo. O significado do “A” deixo em aberto para a imaginação de vocês. Bom... essa história me faz lembrar o conto do Machado de Assis em que o compositor Pestana morre frustrado por só conseguir fazer polcas de sucesso. Se cobrava ser um Chopin (ou seria Choppin?....sei lá... não entendo nada de musique classique)... Coisa ridícula, não, essa idealização do estrangeiro? Dá pena, como deu pena do Caetano se sentindo suburbano por não ter um inglês impecável. Dava vontade de entrar na tela e dizer “Fique assim não, Cae, eu também já senti isso”. Porque o racismo intelectual é insinuoso que precisamos separar o joio do trigo e lutar para que possamos dar asas à língua em todas as bocas deste Brasil. Olha, em suma, a fala brasileira é linda (e eu uma ufanista assumida). É só apurar o ouvido para o que as frases podem dizer a mais, e de muitas formas. Limitações todos temos (olha que clichê adorável!). A gente pega aquilo que tem na frente, o que te ajuda a expressar melhor a idéia, o que o meio te permite usar, o que a escola pública, e o pior, a privada, te legou, o que a escolaridade da sua mãe te reservou, e por aí lá vai. Vai com erro de concordância, e se escrito, com a crase para o outro lado. E mesmo assim sai tanta coisa bonita. É só deixar a janela aberta e ouvir melhor... Aí, os clichês, os erros ganharão acentos próprios e surpreendentes tons.

Cae Cae...


Assisti e recomendo. Lá no Espaço Glauber Rocha, antigo Cine Guarani, Praça Castro Alves (me recuso a propagandear bancos mesmo quando tentam ser politicamente corretos e apoiam a arte). Espaço fantástico, por sinal. Das polêmicas lançadas, ou atualizadas, só não consegui me decidir se concordo ou não de ser, a música americana, a melhor do mundo, "muito melhor" do qua a brasileira. Quando se ouve Caetano cantar em Português tende-se a discordar dele. Sem dúvida a música americana é maravilhosa, ainda que eu goste mais da inglesa, pois adoro o UB 40 e o Pink Floyd. Tipo fã de carteirinha, mesmo. Depois, porque ceder à estas tendências infantis e estéreis de buscar "quem" é o melhor? O que interessa é: a maviosidade da voz do nosso querido baiano de Santo Amaro valoriza ainda mais nossas canções (dele e de outros, nossa, portanto), seja samba, bossa nova, MPB. Além do mais, ver Caetano despir-se em público, alegoricamente, coisa que faz com tanto despudor e prazer, é muito engraçado. A baianidade se compraz com sua audácia e coragem. Nota dez!

sábado, 11 de julho de 2009

Tratamento da Loucura: uma pequena história (I)

Os loucos viveram em relativa liberdade na Europa até o século XVI. Eventualmente eram contidos em casa pela família ou recolhidos pela caridade municipal aos abrigos ou prisões, a depender da classe social a que pertencessem. A lepra, que por tanto tempo assolou a Europa, foi responsável pelo surgimento, após um intervalo de duzentos anos, de um "modelo assistencial": o da medicina da exclusão (Foucault, 1991).
Mudanças na ordem feudal tornaram crescentes as massas de desocupados errantes, desvalidos, evadidos do campo, camponeses esfomeados, responsáveis por pequenas revoltas e perturbações da paz social. A principal estratégia de controle dessas populações excedentes, utilizadas pelos governos de então foi o enclausuramento. Dessa forma, se viram amontoados nas prisões, de forma indiscriminada, ladrões, mendigos e loucos (Jacobina, 1989).
Já no séc. XVIII essa função de controle passa a ser exercida de forma ampla pelo Estado Absolutista através do cameralismo na Alemanha, onde surge a polícia médica (Rosen, 1994). A reorganização do espaço urbano na França em um contexto de grande desenvolvimento das forças produtivas, fez surgir o Hospital Geral como lugar de cura e controle da doença, onde o isolamento do louco propicia o desenvolvimento de um saber sobre a loucura e sua apropriação pela medicina. Um saber que se vai constituindo no reconhecimento do objeto e se legitimando no nível da instituição (Foucault, 1979). Com a separação dos improdutivos em loucos e marginais, os "insanos" passam a ser considerados irresponsáveis pelos seus atos e aos poucos "...vão transitando por várias instâncias... a policial, a pública, a administrativa, a familiar, até aquela que formalizou uma tentativa eficiente de solução: a instância médica" (Jacobina, 1982). Aos marginais, as casas de correção e aos loucos, o asilo.

Fonte: Silveira, T. B. C. A PRÁTICA PSIQUIÁTRICA EM AMBULATÓRIO DE UMA INSTITUIÇÃO PÚBLICA: O CASO DO JULIANO MOREIRA. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Tese de Mestrado, 1996.

Violetas tardias

Cultivava os hábitos como criava as violetas na jardineira do banheiro. Quando as folhas começavam a murchar, o caule a apodrecer, pelo excesso de líquido, trocava-as de lugar, mantendo-as por algum tempo ressequidas. Não que fosse boa de plantas e jardins. Mas o fato é que cultivava os hábitos, junto com as manias e as paixões. Muito provavelmente por esse motivo, decidiu que naquele fim de semana faria tudo a pé. De sandália baixa, ou de tênis, andaria por todos os quarteirões a fuçar odores em oito cantos, a olhar passageiros, seus cachorros, gritos e desencantos, bocas em movimentos anônimos. Saiu, pois, na direção do museu, quase em outro bairro, futucando paisagens, bandeiras coloridas, de todos os partidos, artigos de cada camelô. Não que quisesse comprar qualquer coisa, ou que quisesse, e acabou de fato não resistindo a uma longa trança, de falsos cabelos, para futuros mistérios, delírios de quem não tem o que fazer. Pasta na mão, a quase lhe pesar, quase a lhe roubar o sossego, de reles visitante avulsa, intrusa, executiva em um mundo a se oferecer em espetáculo, caminhou, minutos e minutos, fugindo do sol. O sol, este, queria-lhe suposto, brilhante, atrás dos prédios aquecidos, imponentes, sonhadores, como seu interior. Adentrava resoluta naquele caminho, quase infinito, porque estava só. Só sem ele, sentia-se só. De resto, gostava da solidão. Não que fosse mais que 50% triste. A tristeza dos seus olhos marejava apenas diante da imagem de certos olhos. Os mesmos lindos e eternos olhos. Porque emagrecemos na separação? Mas a pergunta ecoou sorrateira, e se desfez no suor dos passos largos, que se estancavam no ponto-monumento. Sim, ali um dia, tenentes morreram em rebelião. E nesse momento, de calmaria e pasmaceira, diante daquele fardamento militar, estacionado, de prontidão, desejava também rebelar-se. Queria seu boné. Queria sua arma. Queria tomar-lhe o posto de assalto, e ficar, estátua, sem nada sentir, sem nada ressentir, pelas horas de um turno inteiro. "Queria marchar, sem nada ver, exceto você, alvo da minha explosão. Seu peito rasgaria – bomba, a pulsar orgástico no adeus. Não quero que Deus nos salve. De nós, lençóis estendidos guardariam a paz, e o beijo vermelho do batom", pensou. Mas o trabalhador das armas nem se mexeu, alheio aos pensamentos da visitante. Certamente também não se interrogou sobre o que poderia estar uma moça fazendo às duas da tarde, de pleno domingo ensolarado, na portaria de um deserto museu. De modo que as perguntas não ouvidas desfilavam pela calçada de pedras, até se dissolverem, caladas, e cansadas, no banco de madeira pintado à mão. Uma vez sentada, aquietou-se por um segundo apenas, pois logo se agitou, como se a paz nunca pudesse lhe render, nem pegar desprevenida. A causa do sobressalto, o mergulho da gaivota na maré cristalina provocou um sorriso. Sorriso besta a procurar em vão uma cumplicidade inexistente: “Todos os habitantes desta cidade devem estar na praia, com exceção de mim e do guardinha... ora”. Meio tonto, indisposto, o sorriso indolente se soltou, aos poucos. Voou, perdido e atrevido, zombando alto, das pipas, das faixas, dos aviões, de si. Pousou, na lembrança de um pedido: "fica comigo". Pois que temos cada um de aprender um pouco de tudo nessa vida, a pedir e a receber, dar e a merecer, doces lágrimas, violentos beijos. A tarde se foi bem tarde naquele dia esmaecendo as sombras do tal sorriso. E ela desejou ao final a companhia amiga das suas violetas...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Notívaga

Passeia a escuridão
Pelo contorno em sombras
De tão desejado corpo

Arreia o peito
Esbaforido e torto
De cavalgadas infames

Respira o ar
Seu cheiro sem cor
Nem leve presença

Escorre a boca
O veneno árido
De mortal ausência

TChris
03.06.2001
Foto: Amanhecer em Buenos Aires, 2008.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O tempo e a dor

Ela me perguntou: “eu vou morrer logo?”. Tratava-se há uns dois anos de depressão. Há cerca de três meses perdera sua filha de 14 anos por leucemia após longo calvário. Aos trinta e cinco anos, lhe restara um filho de 6, com paralisia cerebral. A dor a levou a contrair pneumonia. Os exames, entretanto, acusaram a verdadeira causa: Aids. Provavelmente o ex-marido, um bruto que já lhe transmitira várias doença venéreas, a tinha contaminado. Agora vivia angustiada pela idéia de que ela podia ter passado a doença para a filha, sem saber, o que justificaria sua leucemia. Eu me saí com meu velho truque: “Claro que vai morrer. Todos vamos morrer, um dia. Mas quando, ninguém sabe”.

“O tempo é a preocupação mais profunda e mais trágica do ser humano; podemos até dizer a única preocupação trágica. Todas as tragédias que podemos imaginar resumem-se numa mesma e única tragédia: o escoamento do tempo. O tempo também é a fonte de todas as servidões” (Simone Weil, 1991).

A dor dilata o tempo em sua infame onipresença. Dizem que a natureza é sábia. Que a dor é um aviso e está a serviço da sobrevivência, que aprendemos com a dor, blá, blá, blá... Não acredito em nada disso. A dor é um erro evolucionário. Uma saída de mau gosto. A verdadeira tragédia, me desculpe Simone Weil. A dor que eu senti ao contemplar aquela dor se congelou no tempo. Se somou a outras dores, escorreu ácida esburacando o peito. Deslizou anos a fio por um caminho subterrâneo até aflorar aqui e agora em uma triste flor de inverno.

O que são políticas?

O objeto de estudo era uma certa organização. Uma instituição que se queria conhecer melhor em sua trajetória histórica, em seu papel de produtora de políticas. Nessa condição, as políticas eram entendidas como ações produzidas sobre o objeto e reproduzidas pelo mesmo objeto enquanto ator social, enquanto aparelho de Estado, enquanto arena do seu próprio processo. Instituição estatal, mas com alma própria. Espelho do Estado, da sociedade, dos grupos que transitam em seu interior, de si mesma.
As políticas para serem pensadas, enquanto objeto, guardam certa dificuldade, por conta da sua alta subjetividade e abstração. Afinal, o que são políticas? Um grupo de ações, de práticas em um período de tempo e lugar determinado, que guardam certas relações entre si de origens diversas, voltadas para determinada área, ou setor, ou determinada grupo populacional. Como nem sempre são produto de uma racionalidade coerente, nem de uma intencionalidade visível, sujeitam-se às interpretações dos estudiosos sociais, a uma certa arbitrariedade. O que faz parte de uma política, e o que não faz? É uma pergunta que podemos fazer. Como avaliar se tal fato, ou situação mantém relações de organicidade com uma política ou não? Parte dessa dificuldade ocorre por que o sentido que se vai dar aos fenômenos, enquanto acontecimentos prenhes de significado para o nosso campo de interesse, é dado a posteriori (em geral muito a posteriori) após longos deslizamentos, com estudos aqui, ali, idéias que se vão difundindo até a formação de um consenso intelectual (ainda assim restrito a alguns grupos acadêmicos), uma fixação, que é o produto acabado de uma verdade "sociológica", ou das ciências sociais.
Tento em verdade, esclarecer uma dúvida. Qual a vantagem que pode me oferecer a escolha do recorte que o estudo das políticas setoriais, ou macro-políticas pode me oferecer para a compreensão da realidade do campo da saúde, das suas relações ontológicas com e Estado e a sociedade, das instituições públicas com as privadas, ou entre si? Poderá este recorte captar a dinâmica dessas relações no plano micro doo cotidiano? Como as políticas sedimentam e formam as estruturas organizativas reprodutoras, mas modificadoras, estruturantes e desestruturantes dos processos existentes no campo da saúde? Em que caminho se orientam, em que direções se voltam a cada conjuntura (outro conceito carregado de arbitrariedade)? São cíclicos estes caminhos, repetitivos, evolutivos, iguais, diferentes, em que? Existe alguma direcionalidade? Se a resposta buscada for do tipo: “o objetivo das políticas é a legitimação do governo, manutenção do Estado e reprodução das relações de produção econômicas”, então são todas iguais, já sabemos a resposta, porque pesquisar? Não, queremos saber quais os mecanismos, os instrumentos, ou como se fazem essas políticas (para neutralizar, denunciar, ou até copiar). Se são planejadas ou simplesmente decididas, porque fracassam, ou não (o que consideramos fracasso pode ser sucesso para outros olhares e racionalidades, pois não conhecemos as estratégias ocultas, os fatos de gabinete, etc.)
Enfim, temos que perguntar quanto da teoria molda o nosso objeto e que ordem de conhecimentos necessitamos para melhor o apreendermos, se um não escraviza ou empobrece o outro, enquanto o que queríamos era encher de luz, de novas cores, objeto e teoria permitindo outras ordens de intervenções, transformação, do objeto, da teoria, do pesquisador (por que não?), da realidade.
É a política que sustenta, utiliza a instituição? É a instituição que viabiliza ou inviabiliza a política, atualiza a política, desencaminha, muda de nome? Se um existe através do outro, em que direção devo focar?
Esse é texto foi elaborado no ano 2000. Achei ele por entre escombros. Como se pode apreender, ele contém um mar de perguntas. Algumas foram respondidas satisfatoriamente e defendidas na forma de uma tese, outras ficaram a meio caminho e outras, ainda, se ocultam na névoa da dúvida mais espessa incitando novas reflexões.