segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Anti-Cristo...

Advertência inicial: quem não assistiu ainda, melhor não ler esta crítica.
Fui convidada para uma sessão de discussão do filme de Lars von Trier em cartaz no cine UFBA. Fomos nós três, duas Christinas e uma Cristiana (apelidas por mim de "as crises") assistir ao Anti-Crist... Só isso já daria o que falar... Resolvi preparar por escrito minha percepção e interpretação da polêmica película. Primeiro de tudo tem a fotografia, lindíssima. Embora os recursos não tenham em si nada de novo, a combinação de slowmotion, preto e branco com technicolor, imagens humanas embutidas em quadros de paisagens da natureza, sonoplastia de terror (lela e outros detalhes, como a mata, lembra a Bruxa de Blair) e música clássica... enfim, a mistura de hiperrealismo (cenas de nú) com o onirismo, tudo isso, torna a obra instigante e misteriosa pois, como diz uma das Crises: "produz muita informação". Como não desejo me alongar muito na questão que desejo postar, vou direto ao ponto que, talvez, não seja tão óbvio para a maioria. Pois bem, por se tratar de uma obra artística (ou com pretensão de) e não de mera peça comercial, convém tratá-la como produção inconsciente. O desejo nestas circunstâncias fica mais fácil de ser percebido, como na leitura das frases longas e rebuscadas, pegando-se um atalho. Ou seja, o desejo se realiza no final. E qual é o final? O homem mata a mulher. Não uma mulher qualquer, mas a mãe malvada, louca, insaciável e que desatenta de quem deveria ser seu maior amor - o filho, calça os sapatos erradamente e lhe provoca uma "deformidade". Culpada, sempre culpada, o autor-diretor deve justificar de todas as formas a consumação do ato final e rechear o filme-sonho de pistas falsas em que o observador-testemunha se perde para nunca desconfiar do seu intento. Se existe uma verdade, ela se encontra no alto da pirâmide do medo, que é medo de si mesmo, e do ato do genocídio, que seria um matricídio, em verdade. Para não matar, o deprimido se destrói, e esse processo de dor, medo e desespero, de fato, nunca vem só... mas não precisa terminar em atos fisicamente violentos. Ao dividir conosco a beleza e a feiura do seu gozo-sofrimento, o autor se expõe sem o risco de ser julgado (ou de ser julgado pelo verdadeiro "crime")... e de quebra ainda ganha muito dinheiro e fama. A arte permite esse milagre. E a indústria cinematográfica permite outro milagre... o da multiplicação dos pães (para o padeiro, é claro).

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Pedofilia é uma praga social

É um crime que tem resistido às mais variadas formas de repressão. Porque isso? Vamos ilustrar com um simples caso. Eu esperava ser atendida em certa lanchonete e ouvi a frase, em tom jocoso, de um atendente para outro, sobre um terceiro também presente na cena: “Ele pegou uma menina de 12 anos...” Como a situação era inequívoca e eu me indignava, falei em voz alta: “Pedofilia é crime”. Então um dos rapazes, ainda em tom de brincadeira, retorquiu: “Crime é não pegar...”.
Não falarei da minha reação de quase violência verbal, mas das reflexões que este caso me suscitou e que desejo passar adiante. O abuso sexual de menores é uma praga que ronda os PSFs e demais serviços de saúde de tal forma que os conselhos tutelares não têm dado conta. Isto sem falar nos casos encobertos ou socialmente aceitos de forma “naturalizada” como acontece principalmente com relação ao abuso de meninas muito pobres, que exibam comportamento sedutor, ou não, e (ou) gozem mais liberdade, consentida ou não pelos pais. O que se esconde por detrás da pedofilia, além dos problemas psíquicos pouco abordados como a impotência, a imaturidade sexual, o machismo e a drogadição? Ou, mais precisamente, o que se esconde por trás desta tolerância sexual demonstrada pela nossa comunidade masculina (e também feminina)? Uma grande covardia e baixa masculinidade, com certeza. Mas também uma coisificação do outro humano. Covardia porque se busca seduzir, assediar, alguém que não tem capacidade de julgar o outro como parceiro sexual, não tem capacidade para escolher, e que é irresponsável perante a lei e a sociedade (em menor o assédio sexual é sempre considerado violento e igual a estupro, não importando a reação da criança, se houve consentimento ou não). É covardia justificada na maioria das vezes de forma hipócrita ou cínica (“quem quiser que segure suas filhas” ou “ela queria” ou “ela era safada”, etc). É irresponsabilidade porque o agressor não pensa nas conseqüências deletérias daquele ato para o outro, mas apenas em seu prazer egoísta, no seu gozo estéril e perverso. Não pensa nunca no sofrimento que pode causar a uma menina porque... no fundo... ele odeia as meninas, e seu prazer é mais da ordem da destruição do objeto de desejo, o que indica sérios problemas na relação com o sexo oposto, ou “baixa masculinidade”. Porque é baixa a masculinidade, são imaturas as formas de gozo sexual, e são precárias as formas de responsabilidade moral, o alvo sexual vai do “qualquer uma”, do próprio harém ou do vizinho, para uma que guardaria certa "pureza", certa "inocênia", que se quer, justamente, macular, colocar uma nódoa, uma marca, ou uma "apropriação". Porque existe uma diferença muito grande em fantasiar e fazer. Se a fantasia indica fixações neuróticas, o fazer pressupõe distúrbio de caráter, ou psicopatia (já que agora está na moda). Como os distúrbios de caráter, ao contrário do que o “psiquiatra” da novela das oito reitera seguidamente, não são inatos, mas adquiridos - ninguém nasce psicopata, mas torna-se um (ainda que precocemente se vá delineando a personalidade neste sentido) - compreender estas dinâmicas sociais que facilitam o molde destas estruturas de personalidade é crucial para sociedades que queiram, realmente (não apenas no nível do discurso politicamente correto), combater esse incêndio insidioso, recorrente, devastador que atinge as meninas da nossa terra. Por fim, é ainda mais ridículo, para não dizer triste, se vangloriar de “pegar” uma menor de idade como se fosse uma façanha, algo que possa colocar um homem numa situação de vantagem, respeito, valorização, perante seus “coleguinhas”. Seja como for, ficar calado é o mesmo que aceitar esse tipo de coisa, o que não é possível, pois o melhor tratamento, no plano coletivo, para a psicopatia é ainda a repressão social. E este é o meu motivo de trazer à baila tão incômodo, mas necessário assunto. Isto é real, acontece a todo momento e conta com as mais absurdas complicidades. Se sexo é coisa boa e natural, sua prática violenta deve ser tratada, a meu ver, com uma política de intolerância zero (com o agressor), muita discussão e des-obscurecimento. Pais, professores e profissionais de saúde não devem temer tratar esses temas, mas sim criar espaços, onde eles possam emergir, sem culpas, para o plano consciente, dando possibilidades para que se estabeleçam as responsabilidades de cada um no combate a esta cultura alimentadora das várias formas de dominação e opressão, entre as quais se inclui a de gênero, e cujo produto mais ignóbil é o abuso de menor - a pedofilia.

sábado, 22 de agosto de 2009

A colher

Quando vemos pela primeira vez uma colher,
ela já nos é,
há muito,
familiar...
Ela nos penetrou boca a dentro
dura, metálica,
a trincar nos dentes.
Ela passeou nas mãos
sujas do gosto
e da saciedade.
Ela saltou no chão,
igualmente duro,
em cambalhotas...
Quando o observador se vê diante de uma colher, ele apenas a re-conhece com o intelecto, aquilo que já foi
saber dos sentidos.
Antes eram, ele e a coisa - das Ding,
um só impulso e movimento - der Trieb.
Agora ela o desdenha, e o desafia, em sua indiferente diferença.
Em sua incerteza: é ou não é?
Mas ele quer que seja.
Ele, no seu nômade desejo,
ainda sim, quer... o retorno
da velha e rebelde colher.

domingo, 16 de agosto de 2009

Cidades

Corredores de ventos
a recolher vestígios
de gentes

Cheiros e restos
a espalhar sentidos
diversos

Cores e pedaços
a brilhar despidos
de mentes

Cidades sãs
Cidades sim
Cidades sem ... solução
Cidades sem ... saudade
Vans cidades

sábado, 15 de agosto de 2009

Domingo, pé de cachimbo...

Ar morno que chega tão de leve beijando a fronte. Ainda bem que não mandei tirá-la, aquela árvore daninha, feia, que só de grande começou a dar umas frutinhas vermelhas atraindo os pássaros mais diferentes, desde aquele “quepenininho”, como diria Dani-mirim, gordinho e amarronzado, até o cinza mais grandinho de bico fino, e os grandões mascarados de papo amarelo. Já reparou como os passarinhos são rápidos? Não param quietos. A vida deles é veloz. Da rede os observo a pouco mais de um braço estendido, bicando a fruta ainda verde que não desgruda. Assim vão eles, testando a natureza. Tenho vontade de ouvir música, mas sou vencida pela delícia dos sons de tarde da minha janela. Espero já há algum tempo ver repetir-se aquele chiado típico de fazenda, lembrando vagamente o canto da cigarra, que me faz vagar na memória dos meus nove anos. Por que me sinto entranhada nesse período dos primeiros meses que cheguei a Dias D’Ávila? Período da casa alugada em frente ao trilho do trem? Da menina que morava do outro lado e tinha uma boneca de papelão com imã, onde se podiam grudar roupinhas? Do passeio na carroça puxada a trator nos levando até Amado Bahia, onde ainda descansava, semi-coberto pelo matagal, o antigo Matadouro, restos mortais da enorme fazenda que um dia havia sido do meu bisavô, e que entrava, lenta e justamente, na posse dos habitantes da terra? Restos de uma riqueza devoluta (Mata d’ouro). Talvez ficasse eu-menina, impressionada com a história, contada pelos garotos locais, da grande jibóia de mais 10 metros que habitava as ruínas. Foi nesse mesmo passeio que vi de perto, pela primeira vez, uma roseira. Uma roseira num jardim cimentado. Tão estranho, este jardim, quanto um certo silêncio, ou clima, que impregnou minha alma desde então. Um silêncio que vale ouro e mata o tempo. Sintetiza o ser e ente marginal que sou, a fugir das cobranças, das prisões, da serpente, que engole gente e aprisiona os dias nas entranhas. Eu, velha jibóia desassombrada, sigo o estalido das folhas secas enfeitiçada pelos gritinhos assanhados dos passarinhos. Estes sons me chamam, a menina e as rosas pálidas me chamam, mas eu só quero marejar calma na minha rede de sonhos... fugir de mim. Delicioso Domingo.

Cacete

Objeto de madeira utilizado como arma.
Com o acréscimo da sílaba "te" designa objeto similar para uso específico da polícia civil ou militar no ataque/defesa contra a população civil insubordinada.
Deu origem à expressão "baixar o cacete", que significa bater, falar mal, brigar.
Na Bahia é pão de sal longo, também chamado "vara", "bisnaga".
Mais popular são os "pães cacetinhos" consumidos com manteiga, queijo derretido, tomate e alface...
Adjetivo sinônimo de muito, bom demais, coisa boa, como na frase “Bom pra cacete”. Ou "Do cacete".
Adjetivo sinônimo de “coisa nenhuma”, “uma ova”, “de jeito nenhum”, como na frase “Bom o cacete”.
Adjetivo sinônimo de gente chata, que nem eu, com falta do que fazer...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Vencedores e Perdidos

Porque estamos sujeitos ao desequilíbrio do mundo? Desequilíbrio equilibrado. Falo dos sucessos e dos fracassos que alguns acumulam mais que outros, em proporções, amplitudes, as mais variadas. Procuro um consolo na idéia de que se só houvessem sucessos na minha vida me tornaria uma pessoa prepotente e arrogante. Ainda bem que existem os fracassos para baixar a bola da gente. Então hoje foi um daqueles dias de fracasso doído, quando as dificuldades de se trabalhar em equipe, de depender de outros, de ter que coordenar te desafiam para além dos limites. Pois tudo o que se quer e se fez a vida inteira foi funcionar em cima dos pedidos dos outros. Preciso disso, tome aqui. Você aperfeiçoa o seu peixe, engorda, ensina truques, doura a pílula, mas ela continua valendo o que o mercado dá. Aí você muda de ramo. E tem que penar pra aprender as novas regras, os macetes. E tem que aprender a avaliar outros. Julgar, segundo objetivos que nem sempre são seus. Então eu vi os 5 garotos saírem depois de 10 dias em que o sonho foi se aproximando, devagar, até os tocar. Você comanda uma guerra de uns contra outros. Uma corrida de obstáculos: preenchimentos on-line, contatos, exigências mis, roda, "mas é assim, mas não é assim". E tudo termina na beira da praia. Os meninos se vão desolados, sem suas bolsinhas de pesquisa. São estudantes, alguns de baixa renda, ou quase isso, que deram um pouco mais que duro pra entrar na faculdade. Ótimos alunos. Você alimentou o sonho e não pôde realizar. Você viu 5 meninos que deveria cuidar se irem perdidos na sua desolação. Quase tão perdidos quanto você mesma. E seu eu fracassado se solidariza ainda mais com eles. Seu eu anti-fracasso, anti-classificações, pacífico e amante da diferença, da tolerância, se rebela contra qualquer forma de racionalização idiota que se cala perante uma verdade única, que é a sua cumplicidade com o desequilíbrio injusto do mundo. E você se (a) sujeita ainda assim.

Você, poesia

Se o amor é dor
És a morfina
Entrando doce
Na minha viciada veia...

Se o amor é peso
És a pluma
A pairar soberba
Acima de intrincada teia...

Se o amor é dúvida
És a certeza vadia
Alegre quimera
Que me quer... poesia.

domingo, 26 de julho de 2009

Da língua e seus clichês

Detestável o clichê sobre clichês. Volta e meia surge alguém querendo "salvar" a língua dos lugares-comuns, jargões, e outras estereotipias típicas da normalidade. Normal no sentido de medianidade, distribuição ao natural, estatisticamente falando. Um jornalista falava dia desses, acidamente, contra o excesso de clichês. Mas fazia isso com muito pedantismo, o que me enfureceu. Ele não perguntou sobre o que poderia levar certas expressões a se enraizarem no gosto popular, principalmente aquelas que, inicialmente, se revestiram de algum requinte, porque foram ditas por algum notável aí da vida. Não se perguntava sobre a utilidade do lixo, nem do lixo porventura produzido por si próprio. De qualquer modo, todo lixo pode ter alguma utilidade e pode, até, por escassez, insistência, ou rebeldia, provocar beleza. Ou diferença. Em suma, policiamento sobre linguagem é um verdadeiro saco. Autoritarismo cultural, ou coisa piorpior. Não me sinto autorizada nem a criticar os anglicismos, que odeio, pois isso me impediria de usar e abusar dos recursos que outras línguas podem me dar. Então, o que autoriza um cicraninho qualquer a reclamar da repetição, se esse movimento é inerente a todas as idades e condições? Se os adultos, mesmo enjoados, não podem escapar da sua porção macaco, mesmo que queiram? Posso dizer: quem o autoriza é um meio impresso intelectualóide do eixo sul com circulação prevista para a classe “A” e que caiu por acaso nas minhas mãos “CC”. “CC” aqui quer dizer “com calos”. Eu inteira posso ser calo. O significado do “A” deixo em aberto para a imaginação de vocês. Bom... essa história me faz lembrar o conto do Machado de Assis em que o compositor Pestana morre frustrado por só conseguir fazer polcas de sucesso. Se cobrava ser um Chopin (ou seria Choppin?....sei lá... não entendo nada de musique classique)... Coisa ridícula, não, essa idealização do estrangeiro? Dá pena, como deu pena do Caetano se sentindo suburbano por não ter um inglês impecável. Dava vontade de entrar na tela e dizer “Fique assim não, Cae, eu também já senti isso”. Porque o racismo intelectual é insinuoso que precisamos separar o joio do trigo e lutar para que possamos dar asas à língua em todas as bocas deste Brasil. Olha, em suma, a fala brasileira é linda (e eu uma ufanista assumida). É só apurar o ouvido para o que as frases podem dizer a mais, e de muitas formas. Limitações todos temos (olha que clichê adorável!). A gente pega aquilo que tem na frente, o que te ajuda a expressar melhor a idéia, o que o meio te permite usar, o que a escola pública, e o pior, a privada, te legou, o que a escolaridade da sua mãe te reservou, e por aí lá vai. Vai com erro de concordância, e se escrito, com a crase para o outro lado. E mesmo assim sai tanta coisa bonita. É só deixar a janela aberta e ouvir melhor... Aí, os clichês, os erros ganharão acentos próprios e surpreendentes tons.

Cae Cae...


Assisti e recomendo. Lá no Espaço Glauber Rocha, antigo Cine Guarani, Praça Castro Alves (me recuso a propagandear bancos mesmo quando tentam ser politicamente corretos e apoiam a arte). Espaço fantástico, por sinal. Das polêmicas lançadas, ou atualizadas, só não consegui me decidir se concordo ou não de ser, a música americana, a melhor do mundo, "muito melhor" do qua a brasileira. Quando se ouve Caetano cantar em Português tende-se a discordar dele. Sem dúvida a música americana é maravilhosa, ainda que eu goste mais da inglesa, pois adoro o UB 40 e o Pink Floyd. Tipo fã de carteirinha, mesmo. Depois, porque ceder à estas tendências infantis e estéreis de buscar "quem" é o melhor? O que interessa é: a maviosidade da voz do nosso querido baiano de Santo Amaro valoriza ainda mais nossas canções (dele e de outros, nossa, portanto), seja samba, bossa nova, MPB. Além do mais, ver Caetano despir-se em público, alegoricamente, coisa que faz com tanto despudor e prazer, é muito engraçado. A baianidade se compraz com sua audácia e coragem. Nota dez!

sábado, 11 de julho de 2009

Tratamento da Loucura: uma pequena história (I)

Os loucos viveram em relativa liberdade na Europa até o século XVI. Eventualmente eram contidos em casa pela família ou recolhidos pela caridade municipal aos abrigos ou prisões, a depender da classe social a que pertencessem. A lepra, que por tanto tempo assolou a Europa, foi responsável pelo surgimento, após um intervalo de duzentos anos, de um "modelo assistencial": o da medicina da exclusão (Foucault, 1991).
Mudanças na ordem feudal tornaram crescentes as massas de desocupados errantes, desvalidos, evadidos do campo, camponeses esfomeados, responsáveis por pequenas revoltas e perturbações da paz social. A principal estratégia de controle dessas populações excedentes, utilizadas pelos governos de então foi o enclausuramento. Dessa forma, se viram amontoados nas prisões, de forma indiscriminada, ladrões, mendigos e loucos (Jacobina, 1989).
Já no séc. XVIII essa função de controle passa a ser exercida de forma ampla pelo Estado Absolutista através do cameralismo na Alemanha, onde surge a polícia médica (Rosen, 1994). A reorganização do espaço urbano na França em um contexto de grande desenvolvimento das forças produtivas, fez surgir o Hospital Geral como lugar de cura e controle da doença, onde o isolamento do louco propicia o desenvolvimento de um saber sobre a loucura e sua apropriação pela medicina. Um saber que se vai constituindo no reconhecimento do objeto e se legitimando no nível da instituição (Foucault, 1979). Com a separação dos improdutivos em loucos e marginais, os "insanos" passam a ser considerados irresponsáveis pelos seus atos e aos poucos "...vão transitando por várias instâncias... a policial, a pública, a administrativa, a familiar, até aquela que formalizou uma tentativa eficiente de solução: a instância médica" (Jacobina, 1982). Aos marginais, as casas de correção e aos loucos, o asilo.

Fonte: Silveira, T. B. C. A PRÁTICA PSIQUIÁTRICA EM AMBULATÓRIO DE UMA INSTITUIÇÃO PÚBLICA: O CASO DO JULIANO MOREIRA. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Tese de Mestrado, 1996.

Violetas tardias

Cultivava os hábitos como criava as violetas na jardineira do banheiro. Quando as folhas começavam a murchar, o caule a apodrecer, pelo excesso de líquido, trocava-as de lugar, mantendo-as por algum tempo ressequidas. Não que fosse boa de plantas e jardins. Mas o fato é que cultivava os hábitos, junto com as manias e as paixões. Muito provavelmente por esse motivo, decidiu que naquele fim de semana faria tudo a pé. De sandália baixa, ou de tênis, andaria por todos os quarteirões a fuçar odores em oito cantos, a olhar passageiros, seus cachorros, gritos e desencantos, bocas em movimentos anônimos. Saiu, pois, na direção do museu, quase em outro bairro, futucando paisagens, bandeiras coloridas, de todos os partidos, artigos de cada camelô. Não que quisesse comprar qualquer coisa, ou que quisesse, e acabou de fato não resistindo a uma longa trança, de falsos cabelos, para futuros mistérios, delírios de quem não tem o que fazer. Pasta na mão, a quase lhe pesar, quase a lhe roubar o sossego, de reles visitante avulsa, intrusa, executiva em um mundo a se oferecer em espetáculo, caminhou, minutos e minutos, fugindo do sol. O sol, este, queria-lhe suposto, brilhante, atrás dos prédios aquecidos, imponentes, sonhadores, como seu interior. Adentrava resoluta naquele caminho, quase infinito, porque estava só. Só sem ele, sentia-se só. De resto, gostava da solidão. Não que fosse mais que 50% triste. A tristeza dos seus olhos marejava apenas diante da imagem de certos olhos. Os mesmos lindos e eternos olhos. Porque emagrecemos na separação? Mas a pergunta ecoou sorrateira, e se desfez no suor dos passos largos, que se estancavam no ponto-monumento. Sim, ali um dia, tenentes morreram em rebelião. E nesse momento, de calmaria e pasmaceira, diante daquele fardamento militar, estacionado, de prontidão, desejava também rebelar-se. Queria seu boné. Queria sua arma. Queria tomar-lhe o posto de assalto, e ficar, estátua, sem nada sentir, sem nada ressentir, pelas horas de um turno inteiro. "Queria marchar, sem nada ver, exceto você, alvo da minha explosão. Seu peito rasgaria – bomba, a pulsar orgástico no adeus. Não quero que Deus nos salve. De nós, lençóis estendidos guardariam a paz, e o beijo vermelho do batom", pensou. Mas o trabalhador das armas nem se mexeu, alheio aos pensamentos da visitante. Certamente também não se interrogou sobre o que poderia estar uma moça fazendo às duas da tarde, de pleno domingo ensolarado, na portaria de um deserto museu. De modo que as perguntas não ouvidas desfilavam pela calçada de pedras, até se dissolverem, caladas, e cansadas, no banco de madeira pintado à mão. Uma vez sentada, aquietou-se por um segundo apenas, pois logo se agitou, como se a paz nunca pudesse lhe render, nem pegar desprevenida. A causa do sobressalto, o mergulho da gaivota na maré cristalina provocou um sorriso. Sorriso besta a procurar em vão uma cumplicidade inexistente: “Todos os habitantes desta cidade devem estar na praia, com exceção de mim e do guardinha... ora”. Meio tonto, indisposto, o sorriso indolente se soltou, aos poucos. Voou, perdido e atrevido, zombando alto, das pipas, das faixas, dos aviões, de si. Pousou, na lembrança de um pedido: "fica comigo". Pois que temos cada um de aprender um pouco de tudo nessa vida, a pedir e a receber, dar e a merecer, doces lágrimas, violentos beijos. A tarde se foi bem tarde naquele dia esmaecendo as sombras do tal sorriso. E ela desejou ao final a companhia amiga das suas violetas...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Notívaga

Passeia a escuridão
Pelo contorno em sombras
De tão desejado corpo

Arreia o peito
Esbaforido e torto
De cavalgadas infames

Respira o ar
Seu cheiro sem cor
Nem leve presença

Escorre a boca
O veneno árido
De mortal ausência

TChris
03.06.2001
Foto: Amanhecer em Buenos Aires, 2008.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O tempo e a dor

Ela me perguntou: “eu vou morrer logo?”. Tratava-se há uns dois anos de depressão. Há cerca de três meses perdera sua filha de 14 anos por leucemia após longo calvário. Aos trinta e cinco anos, lhe restara um filho de 6, com paralisia cerebral. A dor a levou a contrair pneumonia. Os exames, entretanto, acusaram a verdadeira causa: Aids. Provavelmente o ex-marido, um bruto que já lhe transmitira várias doença venéreas, a tinha contaminado. Agora vivia angustiada pela idéia de que ela podia ter passado a doença para a filha, sem saber, o que justificaria sua leucemia. Eu me saí com meu velho truque: “Claro que vai morrer. Todos vamos morrer, um dia. Mas quando, ninguém sabe”.

“O tempo é a preocupação mais profunda e mais trágica do ser humano; podemos até dizer a única preocupação trágica. Todas as tragédias que podemos imaginar resumem-se numa mesma e única tragédia: o escoamento do tempo. O tempo também é a fonte de todas as servidões” (Simone Weil, 1991).

A dor dilata o tempo em sua infame onipresença. Dizem que a natureza é sábia. Que a dor é um aviso e está a serviço da sobrevivência, que aprendemos com a dor, blá, blá, blá... Não acredito em nada disso. A dor é um erro evolucionário. Uma saída de mau gosto. A verdadeira tragédia, me desculpe Simone Weil. A dor que eu senti ao contemplar aquela dor se congelou no tempo. Se somou a outras dores, escorreu ácida esburacando o peito. Deslizou anos a fio por um caminho subterrâneo até aflorar aqui e agora em uma triste flor de inverno.

O que são políticas?

O objeto de estudo era uma certa organização. Uma instituição que se queria conhecer melhor em sua trajetória histórica, em seu papel de produtora de políticas. Nessa condição, as políticas eram entendidas como ações produzidas sobre o objeto e reproduzidas pelo mesmo objeto enquanto ator social, enquanto aparelho de Estado, enquanto arena do seu próprio processo. Instituição estatal, mas com alma própria. Espelho do Estado, da sociedade, dos grupos que transitam em seu interior, de si mesma.
As políticas para serem pensadas, enquanto objeto, guardam certa dificuldade, por conta da sua alta subjetividade e abstração. Afinal, o que são políticas? Um grupo de ações, de práticas em um período de tempo e lugar determinado, que guardam certas relações entre si de origens diversas, voltadas para determinada área, ou setor, ou determinada grupo populacional. Como nem sempre são produto de uma racionalidade coerente, nem de uma intencionalidade visível, sujeitam-se às interpretações dos estudiosos sociais, a uma certa arbitrariedade. O que faz parte de uma política, e o que não faz? É uma pergunta que podemos fazer. Como avaliar se tal fato, ou situação mantém relações de organicidade com uma política ou não? Parte dessa dificuldade ocorre por que o sentido que se vai dar aos fenômenos, enquanto acontecimentos prenhes de significado para o nosso campo de interesse, é dado a posteriori (em geral muito a posteriori) após longos deslizamentos, com estudos aqui, ali, idéias que se vão difundindo até a formação de um consenso intelectual (ainda assim restrito a alguns grupos acadêmicos), uma fixação, que é o produto acabado de uma verdade "sociológica", ou das ciências sociais.
Tento em verdade, esclarecer uma dúvida. Qual a vantagem que pode me oferecer a escolha do recorte que o estudo das políticas setoriais, ou macro-políticas pode me oferecer para a compreensão da realidade do campo da saúde, das suas relações ontológicas com e Estado e a sociedade, das instituições públicas com as privadas, ou entre si? Poderá este recorte captar a dinâmica dessas relações no plano micro doo cotidiano? Como as políticas sedimentam e formam as estruturas organizativas reprodutoras, mas modificadoras, estruturantes e desestruturantes dos processos existentes no campo da saúde? Em que caminho se orientam, em que direções se voltam a cada conjuntura (outro conceito carregado de arbitrariedade)? São cíclicos estes caminhos, repetitivos, evolutivos, iguais, diferentes, em que? Existe alguma direcionalidade? Se a resposta buscada for do tipo: “o objetivo das políticas é a legitimação do governo, manutenção do Estado e reprodução das relações de produção econômicas”, então são todas iguais, já sabemos a resposta, porque pesquisar? Não, queremos saber quais os mecanismos, os instrumentos, ou como se fazem essas políticas (para neutralizar, denunciar, ou até copiar). Se são planejadas ou simplesmente decididas, porque fracassam, ou não (o que consideramos fracasso pode ser sucesso para outros olhares e racionalidades, pois não conhecemos as estratégias ocultas, os fatos de gabinete, etc.)
Enfim, temos que perguntar quanto da teoria molda o nosso objeto e que ordem de conhecimentos necessitamos para melhor o apreendermos, se um não escraviza ou empobrece o outro, enquanto o que queríamos era encher de luz, de novas cores, objeto e teoria permitindo outras ordens de intervenções, transformação, do objeto, da teoria, do pesquisador (por que não?), da realidade.
É a política que sustenta, utiliza a instituição? É a instituição que viabiliza ou inviabiliza a política, atualiza a política, desencaminha, muda de nome? Se um existe através do outro, em que direção devo focar?
Esse é texto foi elaborado no ano 2000. Achei ele por entre escombros. Como se pode apreender, ele contém um mar de perguntas. Algumas foram respondidas satisfatoriamente e defendidas na forma de uma tese, outras ficaram a meio caminho e outras, ainda, se ocultam na névoa da dúvida mais espessa incitando novas reflexões.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Obá lua aê


Lia sobre os mitos dos orixás. As relações tão estreitas com a natureza. Homens valentes e mulheres ciumentas agora deuses protetores. A religiosidade humana é algo que me espanta. Acho tão engraçado a idéia da oferenda, essa tapeação do Deus. Eu tenho uma pena tão grande de nós humanos. Nosso desamparo primordial, secundial, tercerial... desampara o universo. Eu tenho uma pena tão grande do universo, porque ele é lindo e aluado, como o homem. Quando eu falo universo quero dizer estrelas brilhantes contra um fundo negro azulado. As estrelas são lindas de longe e mortais de perto, como o homem. Queimam tudo que passa por perto. Eu tenho pena de mim, que não sei tapear ninguém. Atotô, meu pai!

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O trem X

Só conseguimos pensar o impossível porque a possibilidade está dada dentro de nós. Ou, não nos é dado a possibilidade de pensar o impossível. Embora digam por aí que só dentro da tradição da academia se possa pensar filosoficamente, ou até que no Brasil não há filosofia. Eu mesma ouvi, eu e o auditório de Direito da UFBA, direto da boca da Agnes Heller, discípula de Lukács: “Porque vocês querem ser bons em tudo? Não já são bons em música, futebol?” Bom, ela quase não sai viva de lá. E eu, saí como Caetano, humilde, ciente que jamais seria filósofa. Minha teimosia, entretanto, contradizendo as impossibilidades concretamente argumentadas, vive a forjar lançamentos. Um verdadeiro Cabo Canaveral Tupiniquim. Faço exatamente da forma como sempre quis fazer: a partir da história. Do caos. Da colcha de retalhos. Abandono os métodos não os abandonando de fato. Porque os métodos fazem parte do meu esquema cognitivo mais remoto, eles me perseguem, brigam entre si, terminando prisioneiros de alguma hegemonia construída por afinidades a cada processo, a cada passo, de forma inicialmente confusa, clareando a seguir, em movimentos de frente e fundo, de difícil apreensão na sua totalidade. Digo o seguinte: quero liberdade de pensamento, mesmo a sabendo restrita, pois só dessa forma será possível ultrapassar a minha enorme deficiência cultural, historicamente dada e filosoficamente comprovada. Uma vez dito, simplesmente aposto que posso ser mais do que sou, e jogo todas as cartas nessa hipótese. Aposto que sou um gênio incompreendido das ciências humanas e vou descobrir o segredo da vida e do universo. O gênio vem, prepara-se para baixar, tomar meu corpo.
Sou arremetida para um lugar distante, para um dia em fins de 1978, ou início de 79. Foi um momento de impacto aquele. Tinha a mania, a qual preservo de forma atenuada, de quase não comer pela manhã. Eu estava em pé e as cores tornavam-se esbranquiçadas. O chão fugia. O som se distanciava lentamente, e uma razão imperativa me mandava sentar. À minha frente, um sapo imobilizado tinha sua coluna seccionada. Ele havia sido anestesiado com um algodão embebido de certa substância, e se encontrava crucificado (braços e pernas amarrados) com o coração exposto, batendo. Pois estava vivo. Sem saber, é claro, mas vivo, aberto na sua intimidade orgânica.
Passado aqueles momentos de aflição (eu viveria outros semelhantes estrada a fora, ahhh viveria), a atenção enfim sairia do mal-estar corporal se dirigindo para a fala da mulher operária, cirurgiã de batráquios, a professora. Ela dizia, imagine o espanto dos jovens, que os homens tinham um clitóris hipertrofiado como forma de ajudar os espermatozóides a fugir da degradação do ambiente, uma vez que a natureza havia trazido, na espécie humana, os óvulos cada vez mais para o ambiente, quente, úmido e protegido do interior feminino, e blá, blá, blá. Então o crescimento desse clitóris era o resultado de muitas tentativas de chegar lá ... Ela dizia, e eu podia, minto, posso, pois que ela não disse tudo isso aí não, disse metade, imaginar esse crescimento ao longo da evolução das espécies, a mulher levando a memória da espécie para dentro e o homem se esticando, se esforçando para acompanhar, penetrar. Aliás, porque "penetra" na língua portuguesa se refere a alguém que entra onde não foi convidado, isso eu não sei, mas posso igualmente mirabolar.
Voltando então à linha do trem, e ao momento que a locomotiva me pegou de frente, posso ver a trajetória desse pensamento pelo ar, caindo naquela árvore, naquele galho vazio, onde a genética mostrava outro fato inusitado, que consistia na irremediável "falta" masculina: a quarta perninha do xis.
A idéia da incompletude masculina como origem de comportamentos aparentemente inexplicáveis como, por exemplo, uma quase total incapacidade para cortar a própria unha do pé. Tanto é que, existem cabeleireiros, barbeiros, mas não existe manicure ou pedicure homem.
Agora, o que tem a ver a incompletude do “y” com o diagnóstico tão reservado daquela mulher marxista sobre nossa incapacidade cultural de pensar?
Vamos abrir um parágrafo reflexivo. Na Bahia nós pensamos preferencialmente em redes, substitutos perfeitos do sofá e do divã, tomando café em caneca, ou deitados em baixo dos cortinados de filó, daí o verbo filo-sofar adquirir aqui conotações ligeiramente diferentes que em outros cantos do planeta. Os pensamentos nos chegam pelo vento Noroeste, se não me engana minha geografia, depois de percorrer as costas cálidas da ontomãe África, e se infiltram na alma, como perguntas. Dúvidas sobre questões que já intuímos as respostas. Pois só se pergunta o que se sabe de antemão.
O sapo sacrificado não é apenas a origem de toda possibilidade, mas a prova cabal da maldade imanente do querer tudo: saber, ser, ter. Eu dispenso um conhecimento que desconhece a vida. Na minha memória uma cena ecoa: inúmeras turistas da Indonésia pisoteando as tulipas só para tê-las vivas em uma foto. Matam plantas por uma foto. Matam peixes também. Aliás, isso até parece uma besteira, eu estar me indignando por tão pouco. O que é um sapo, uma tulipa, um peixe, um homem com seu “x” capenga?
Detenho-me, imobilizada. O trem descarrilhou.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Seria o BLOG uma catarse virtual?

Polemiza Ila num comentário lá de baixo... Ela diz: "... pois ele não é mais um recurso virtual de entretenimento e relações sociais, é uma diário público, cujas afetações transbordam o corpo e respingam nesse "papel de vidro". Poxa! Linda metáfora. Mas eu nunca pensei sobre os Blogs porque fui da era dos Fóruns e dos Chats, até me encher deles... há uns 7 anos, por aí. O Blog é de uma geração de internautas mais recente. Começou a bombar quando eu já me desinteressava das navegações virtuais. Mas, eis que um dia, inteiramente por acaso, vou parar num Blog acadêmico e me pergunto: por que não faço um? Aí testei a ferramenta e fui fazendo o bichinho... tem menos de duas semanas. Agora tenho que alimentar ele, conhecer suas potencialidades, testar efeitos, observar riscos, pesar consequencias. Em verdade, busco há tempos um veículo dessa natureza. E já venho maturando o que aqui desejo colocar: coisas bombásticas. Mas, devo ir devagar. Sentir a receptividade ao diálogo, o interesse da platéia, por diminuta que seja, tem que ser crítica, senão fica chato. Antecipo que o tema sobre o TEMPO é meu grande quebra-cabeça e, aparentemente, é aqui que vislumbro a possiblidade de poder tratar disso. Estou me armando de coragem... Afinal, as rejeições doem... e rejeitarem nossas idéias, quando fazemos dela objetos amorosos, é duro. Daí a necessidade de aprender a divergir, aprender a ensaiar, aprender a acolher com humildade as outras perspectivas. Infelizmente, o espaço acadêmico, em geral, ao contrário do que deveria, não possibilita isso. Os egos que lá habitam são frágeis. Frágeis porque lhes faltam, exatamente, essa prática, esse treinamento. O Blog pode ser um instrumento de catarse sim, de expressão do eu, de reconfiguração das identidades, mas pode ser também uma forma de buscar parceiros do pensamento, das idéias. Buscar uma forma de parceiria mais livre, que inclua as vivência acadêmicas podendo transcendê-las, libertando os laços nela existentes dos formatos padronizados e pouco criativos, rígidos, mas, não necessariamente rigorosos. Além disso, o Blog, diferentemente das publicações tradicionais, ele pode ser reescrito, corrigido, suprimido, é vivo. Trata-se de amor novo... Então, no momento, tudo são flores... daí as tulipas. Agradeço enormente a qualquer um que se sinta estimulado por qualquer frase, comentário, e queira tratar disso, claramente ou de forma enigmática... Não importa. O que interessa é se permitir dizer. Que minha "coragem" consiga sensibilizar para as grandes questões da vida, do trabalho e da saúde, é o que eu desejo.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Um olho na história

Visitando certa revista, refleti sobre o que vem sendo nos últimos dois meses minha maior fonte de gratificação. Aquilo que origina bons pensamentos, um lugar onde se pode refugiar antes de dormir. Esse lugar-refúgio tem sido um livro sobre a história de Constantinopla, e sua série interminável de governantes. Cidade grega, depois romana (mas mantendo a base populacional grega), viveu até o período otomano uma grande miscigenação, invadindo e sendo invadida, se reconstruindo nessa paisagem (landscape) por dois mil anos (Bizâncio 658 AC- Istambul 1453 DC), período que até então eu “visitei” como turista da história, pois me encontro em meados de mil e seiscentos... O livro, ao fazer esse tour panorâmico, deixa ver, aqui e ali, através de estratos de cronistas famosos, ou pela síntese do autor, aspectos interessantes, um dos quais eu quero aqui reportar e dividir com os que, como eu, se alimentam da vida dos que já foram. Mas, entendam, não se trata de necrofilia ou algo parecido, se trata da vida que permanece em memória, em costumes, hábitos, registros, monumentos (Foucault que me perdoe se pareço o trair), objetos-restos de um processo que se dispersa pelo vento guloso, aquele que no seu movimento, traga a tudo e a todos. O mistério dessa vida perdida me encanta naquilo que se chama resistência e que escapa a esta voracidade dos tempos, insinuando-se nas estruturas, desafiando as leis dos homens e dos deuses. Bom, filopoesia à parte vamos à tal história: as corridas de cavalos com suas facções de torcida verde, azul, branca e vermelha. Essas facções foram se constituindo em relação com as associações profissionais, as guildas, e tinham características de classe e de religião. Assim, como o Bahia é do povão e o Vitória das elites (Epa! É só uma brincadeira). Enfim, os azuis eram religiosamente ortodoxos e vinham das classes alta e média, enquanto os verdes, trabalhadores, sendo radicais tanto na religião, quanto na política. Como essas duas facções fossem as dominantes, os brancos e vermelhos terminavam, muitas vezes sendo absorvidos pelas polarizações que provocavam. O autor, John Freely, conta que as corridas envolviam, em geral, quatro quadrigas, duas carruagens puxadas por quatro cavalos cada, ornamentadas com as cores dos seus “times”, por uma distância de dois km e meio. As atividades circenses com malabaristas, animais e atores ocorriam no intervalo das disputas. O interessante desses esportes era a paixão que despertavam e que dividia a população, levando muitas vezes a agitações, numa relação estreita com dinheiro, crime e morte. Segundo um dos cronistas, os homens chegavam a colocar os interesses dos seus “times” acima da “família, do lar, do país”. O calendário oficial, nos séculos 5 e 6, apresentava cerca de 66 feriados anuais, chegando, às vezes a 24 corridas por dia. Estas corridas eram realizadas no Hippodrome (ver imagem), uma espécie de estádio-arena, onde todas as cerimônias públicas importantes, incluindo castigos e posses eram realizadas. Por conta desses dados passei a especular, enquanto leiga curiosa, sobre a origem do termo “sangue azul”... se não viria dessa conexão nobreza-time dos azuis. Pode ser também que a relação de causalidade esteja invertida. De qualquer modo, Constantinopla, nesse período, é a cidade mais importante do ocidente. Sua história é a nossa história: triste e linda ao mesmo tempo. Sentada na poltrona eu assisto, passiva, coração e livro na mão, ao desfile das carruagens, aos dramas palacianos, massacres populacionais imensos e constantes, nessa vivência experimental e controlada que a atividade onírica permite. Esqueço, por momentos, das chacinas que logo ali, do outro lado do muro, se cometem, verdes contra verdes. Do lado de cá, podendo ser a qualquer momento expulsa pelos azuis, eu confabulo com os vermelhos saídas para um novo mundo onde os jogos possam ser virtualidades, meras simulações do que poderia ser, e não brincadeira sem graça com a vida dos outros. Por isso, o alívio do sonho é o mesmo do passado, alternativa alegre à morbidade do presente. Ai se eu pudesse esquecer que tudo isso é real... porque perdi minha inocência?

quarta-feira, 10 de junho de 2009

SUSpiros

Hoje tem aula pública do SUS no salão Nobre da Reitoria da UFBA às 18 horas. A palestrante, Sônia Fleury, é uma intelectual que pensou e ainda pensa o SUS, nosso sonho brasileiro de Bem-Estar Social. Apesar do meu humor depressivo que me faz pedir socorro (SOS) a Pirro (defesa cética contra as desilusões), e de mais outras alusões inconscientes à loucura e à imolação pelo fogo, eu ainda sou uma defensora, adoradora, amante do nosso Sistema de Saúde, admiradora de todos aqueles (trabalhadores de saúde) que lutam cotidianamente para mantê-lo em pé, vivo e atuante na sua missão-mostro de cuidar da saúde da população brasileira - toda a população brasileira, ricos e pobres, pois todo mundo usa o SUS de uma forma ou de outra. Então hoje o convite é esse, de ouvir uma mulher sábia, sobre nossa realidade sonhada e em processo de construção há 21 anos...

terça-feira, 9 de junho de 2009

Tulipas...



... observam o vermelho
dos telhados
vizinhos...

Morte Violenta

Ademar foi assassinado sábado às nove da noite em um bairro de Salvador. Ele estava sentado numa esquina perto de casa, bebendo com um amigo quando um carro escuro passou e matou os dois. Ademar era um sujeito quieto, bom, ajudava os mais necessitados do bairro, tinha 36 anos. Morreu bestamente, sem nem saber porque. Sua família sofre. Cada vez mais famílias sofrem neste desamparo urbano, de salve-se quem puder. Ademar não é mais um número nas estatísticas de mortalidade. Ele era o filho de D. Elvira. Estamos todos tristes.

O que vejo hoje?

Vejo minha trajetória enquanto sujeito do campo da saúde sempre in-conformado com o instituído, cambiante, a deixar pequenos rastros em cada caminho percorrido, a produzir deslocamentos e rupturas. As costuras desses deslizamentos projetam minha própria imagem onde eu miro, não sem um certo espanto, uma face imprevista, mas coerente com seu traçado. Posso olhar no passado em uma nítida imagem, a menina no escritório do pai a admirar a dama vendada esculpida em mármore negro. Porque a justiça é cega? Quais os pesos da sua balança? Como desce a lâmina fria e certeira? E sobre quem?